SINGLE “YO DEBO”
“Yo Debo” é o terceiro e último single do álbum homónimo ‘Mira Kendô’ que será editado no próximo dia 8 de Novembro pela Gris Gris.
“Yo Debo” representa o que existe de mais clássico nas composições musicais de Braima Galissá: simples e cativantes, as pessoas apaixonam-se por elas em todos os lugares onde Braima as toca. Com a produção a cargo de Jori Collignon, a faixa chega onde Braima queria: ainda que bem ancorada na música e na tradição Griot do Kora, na sua essência, “Yo Debo” é música feita para dançar, para unir as pessoas, música para fazer as pessoas sentirem-se bem.
“Yo Debo” é uma canção sobre ciclos. Conta uma história sobre como podemos inspirar os nossos filhos a serem as melhores versões de si próprios. A mudança real demora geralmente várias gerações e exige o conhecimento e o respeito pela tradição: apoiamo-nos nos ombros dos nossos antepassados. [À medida que os pais ajudam os filhos, os filhos ajudam os pais, os filhos tornam-se pais e assim por diante.]
Mira Kendô é um grupo que une gerações e culturas. O seu primeiro álbum é uma introdução calorosa à alegria e energia desta colaboração.
MIRA KENDÔ
Braima Galissá nasceu na Guiné-Bissau, cresceu na tradição familiar dos griots, figuras íntimas da história cultural e identitária do povo Mandinga. Durante anos, dedicou-se a explorar as profundezas da sua herança, praticando a arte e o ofício da Kora.
A história de Mira Kendô começa no estúdio de Jori Collignon, quando Braima lhe foi apresentado por um amigo comum, Francisco Sousa (Fininho). Assim que Braima começou a tocar a Kora, surgiram composições maravilhosas. Instintivamente, Jori agarrou nas suas drum machines e começou a adicionar camadas. Foi tudo muito natural, como se estivéssemos a conversar através da música. Apesar de termos referências musicais tão diferentes, começámos imediatamente a compor juntos.
Produtor, teclista e músico eletrónico, Collignon vê-se como um amante das raízes tradicionais da música, que utiliza para tecer, na sua própria trama identitária, as pontes sonoras que interligam diferentes povos, origens e gerações. Para o músico holandês, foi uma imersão profunda na rica herança musical da Guiné-Bissau. “Sempre me fascinou a música tradicional e a forma como ela viaja, evolui e se transforma pelo mundo fora.”, partilha o músico. Quando Jori e Braima falam de música tradicional, não se referem a algo preso no passado, mas sim a um género vivo, em constante mutação. Trata-se de compreender o lugar da música no mundo. A música autêntica não é apenas uma atuação; "ela move-se, transforma-se, tem uma função e provoca-nos."
Juntamente com o célebre guitarrista da Guiné-Bissau, Eliseu Forna Imbana e o baterista de Selma Uamusse, Gonçalo Santos, reuniram-se para criar algo verdadeiramente especial, misturando influências diversificadas e a paixão comum por uma música que transcende fronteiras. Esta música é um testemunho do poder da colaboração e da beleza que surge quando diferentes culturas e tradições se encontram e dialogam através do som.
BRAIMA GALISSÁ
“O Híbrido Improvável”
Texto de Fininho Sousa
Conheci Braima Galissá lentamente. Não num determinado momento, mas ao longo de anos. Quando nos tornámos amigos próximos e começámos a trabalhar juntos, éramos já incapazes de traçar a origem exacta da nossa amizade. Braima é uma figura cultural de talento cristalino, colocado perante uma ambiguidade azeda. Por um lado, é um artista disciplinado e meticuloso, que atingiu um nível de desempenho raro, colaborou com algumas das maiores figuras da música nacional como Sara Tavares e General D, toca Kora todos os dias há 55 anos e impõe um estilo especialmente tecnicista, sofisticado, e absorvente de todas as linguagens musicais valiosas à sua volta. Por outro, a arquitectura dos costumes culturais Europeus delineou-lhe limites por ele sempre rejeitados mas impossíveis de ignorar. Vezes sem conta, em sua representação perante o interesse - mais ou menos formal - de editoras na gravação e edição dos seus temas, ouvíamos propostas ou planos de pré-produção já definitivos que consistiam apenas no Braima, sozinho, a tocar os seus temas na Kora, cantando. Sem metrónomo, sem efeitos; “Puro”. E sem interesse em ouvir o próprio artista que, repetindo em vários idiomas e ao longo de variações gramaticais, afirmava que a sua música era de dança, criada para uma banda de pelo menos cinco elementos. Estes editores independentes, bem versados nos obscuros nomes do Jazz, nunca se aperceberam da arbitrariedade daquela arrogância; seria este paternalismo também calmamente explicado a discípulos dos Weather Report? A identidade histórica do Djidiu como contador de histórias e a sua formação histórica como compositor para Kora e voz é inegável. O que se duvida é do músico tradicional Guineense exclusivamente como agente do passado, estático no tempo, representante de uma pureza cultural imaginada. A Kora, como tantos outros instrumentos desenvolvidos ao longo de séculos, evoluiu. Braima, como qualquer músico Guineense, toca Salsa. O Gumbé, cuja versão Guineense é o orgulho nacional da Guiné-Bissau, teve muitas vidas, e tem muitas versões distintas pela África ocidental adiante. A Morna Cabo verdiana, como argumenta Vasco Martins, tem fortes influências da Argentina, via ilha da Boavista. A modernidade não é um projecto exclusivamente Europeu, e é um desperdício que músicos associados a territórios (erradamente) vistos como alheios à modernidade tenham constantemente de provar que também pertencem ao clube dos “cosmopolitas”. Os Tabanka Djaz que o digam.
A 8 de Junho de 1998, de regresso à Guiné-Bissau depois de ter actuado em dois concertos, viu os seus voos cancelados ao saber que Ansumane Mané tinha reunido tropas para depor Nino Vieira em Bissau, iniciando uma Guerra Civil. Braima viu-se, então, inadvertidamente retido em Portugal e uma nova vida tomou forma. Um novo país por tempo incerto, com novas tradições musicais e formas de comunicação, e muitos admiradores de braços abertos. Uma das maiores diferenças que Braima refere ter encontrado em Lisboa foi a de poder colaborar com músicos de conservatório. Estes músicos, experimentados na composição colectiva, impunham um método e uma estrutura, tanto nas composições como nos ensaios, que o fez repensar as possibilidades da Kora e voz em estúdio. Tudo, afinal, era possível. Lembro-me de, em certos períodos de abertura e inspiração, ter ouvido pelo WhatsApp experiências quase diárias que o Braima ia fazendo com músicos de todos os ângulos. Da Kora em loop e sob efeitos, enleada numa manta de texturas de electrónica experimental, a um tema onde a Kora parecia arrastar-se, distorcida, em linguagem blues ou, frequentemente, a Kora tocando sobre uma caixa de ritmos. A vontade de absorver a diversidade espantosa de tradições musicais na metrópole não influenciou, no entanto, um dos pilares fundamentais da sua arte. Braima representa uma forma artística rara entre as elites culturais das grandes cidades contemporâneas: carrega a sua arte como um desígnio que exige disciplina, repetição, rigor e paciência. A Kora exige constantes afinações, manutenção e tipicamente um período de aprendizagem de vários anos, incompatível com a era artística contemporânea de expectativa de resultados imediatos. Braima não vê a sua carreira de músico como uma forma de escape ou de liberdade de expressão, mas como uma responsabilidade herdada, honrosa e que importa cumprir em pleno.
A minha geração, nascida pouco depois do 25 de abril em Portugal, foi totalmente dominada pela cultura do eixo EUA-Reino Unido. Essa preponderância, que abordei de forma juvenil mas enérgica no panfleto “Colónia Cultural Voluntária”, tem como uma das consequências a marginalização imediata de música de tradições afastadas desse eixo. A música de dança electrónica sem Detroit, Chicago, Londres e Manchester perde peso e transforma-se numa de duas hipóteses: um papagaio irrelevante, ou uma novidade imperceptível para a maioria esmagadora das populações ocidentais urbanas, educadas, viajadas e democráticas. As portas da aceitação são sempre, por muitas razões, abertas por projectos das mesmas metrópoles: Nova Iorque, Paris, Londres, LA, Berlim. A World Music como um projecto unitário (que é cada vez menos), mostrava “o outro lado” empurrado pela contracultura e pelos cooperantes entretanto regressados. Esse lado, hoje, está esgotado porque traz consigo percepções essencialistas que o novo entusiasta já não patrocina: genuinidade, simplicidade, primitivismo.
Braima, continuamente avaliado por editores Europeus como apenas um representante, revelou repetidamente para quem o ouviu ao longo da sua longa carreira, todas as qualidades de um compositor tradicional em constante evolução, bem como as de um experimentador urbano implacável. Essas frequências, no entanto, permaneceram inaudíveis às mesmas elites que, nos anos 80, precaviam Youssou N´Dour para que não se degradasse fazendo música sofisticada. Este disco, ao aninhar-se em redor das suas composições enquanto busca um som híbrido e desabrigado, encurta distâncias e junta finalmente a arte de Braima ao corpo árduo de trabalho que cria novos pólos, novas misturas, novos riscos, novas alternativas aos mesmos centros urbanos que ainda hoje nos ditam o gosto. Porque é neste trabalho de lento aperfeiçoamento que se cria cultura: um achatamento intercultural radical que gera uma equivalência e familiaridade, facilitando a troca de argumentos musicais ao ponto das fusões parecerem, afinal, naturais.
Obrigado Braima e Gris Gris.
Spotify: https://open.spotify.com/Mira_Kendô
Instagram:https://www.instagram.com/mirakendo/